O texto a seguir, sobre a morte do crítico de cinema Roger Ebert, foi escrito por Michael A. Wosnick, pesquisador do câncer no Canadian
Cancer Society e National Cancer Institute of Canada.
Trata-se de uma reflexão sobre o vocabulário usado para tratar da morte de pessoas por câncer. O texto original pode ser lido em http://www.kevinmd.com/blog/2013/04/roger-ebert-lose-battle-cancer.html
Roger Ebert não perdeu sua batalha contra o câncer
ou
Quando se
lida com câncer, a linguagem do “perdedor” não funciona
Michael Wosnick 05 de abril de
2013
Fiquei muito
entristecido ontem ao saber da morte de Roger Ebert. Eu, como muitos
ao redor do mundo, estava impressionado e inspirado de como ele tomou
nas mãos seu destino após as consequências da cirurgia de câncer
anos atrás que o deixou inválido e desfigurado e incapaz de comer,
beber ou falar. E, ainda, apesar de sua luta, ele permaneceu uma
força dominante na crítica cinematográfica, blogando, escrevendo
(até mesmo livro de receitas!) e inspirou muitos de nós com sua
visão da vida e do viver.
Isto não é um
obituário de Roger Ebert. Dezenas deles foram escritos, e por
pessoas que o conheciam. Eu não o conhecia. Eu o admirava de longe.
Mas desde que eu
estive lendo tantos relatos da morte de Ebert, um após o outro, o
que me chocou, assim como aconteceu em muitas e muitas outras vezes
no passado ao ler sobre alguém que morreu de câncer, é quanto dos
óbitos e tributos invevitavelmente fazem referência a como ele
“perdeu sua batalha com o câncer”.
Não. Ele não
perdeu. Ele
morreu de câncer.
Esse é
realmente um assunto dolorido para mim, e embora o que segue não
seja exatamente sobre pesquisa de câncer, vou aproveitar a
oportunidade para desafogar alguns sentimentos que guardei por um
longo tempo.
Eu estava pronto
para esta ação ontem à noite, quando li um tweet de Jody Schoger,
uma defensora da causa do câncer de mama que, entre outras coisas,
escreve um blog chamado “Mulheres com câncer”. Nunca encontrei
Jody pessoalmente, mas sinto que a conheço bem de nossas interações
no Twitter. Então não foi uma surpresa que o seu tweet tenha
repercutido em mim e capturado o que eu acreditei fortemente por um
tempo: “Uma vez mais com ênfase: Roger Ebert não perdeu sua
batalha com o câncer. O câncer roubou sua vida.”
Repliquei:
“Batalha
perdida é
muito errado. RT
@jodyms
Uma vez mais com ênfase: Roger Ebert não perdeu sua batalha com o
câncer. O câncer roubou sua vida.”
Nunca tomei de
modo agradável algumas das bem gastas analogias militares
frequentemente usadas no campo do câncer. A “guerra ao câncer”,
o uso de “bombas inteligentes de drogas”, “balas mágicas” e
outras do tipo não me agradam. Mas o que realmente me incomoda é a
ideia de que pessoas batalham contra o câncer e perdem.
Câncer não é
um jogo de ganhadores e perdedores. Se você vive, vence e se você
morre, perde? Quão
inapropriado é isso?
De modo
enfático, NÃO acho que a maioria dos pacientes com câncer e
sobreviventes não tenham de fato LUTADO contra essa doença É certo
que eles lutaram em muitos casos contra longas adversidades. Eu sei
como é duro lidar com um diagnóstico de câncer e resistir a
tratamentos oncológicos mesmo “moderados”. Isso exaure o corpo e
a mente, com frequência tira a dignidade e devasta as relações e
famílias e tudo o mais que é importante para todos nós. Então
não, não estou dizendo que pessoas que enfrentam o câncer não são
valentes e corajosas e não estão em uma verdadeira “batalha”.
Não é a parte
da “batalha” que me incomoda – é a parte do “perder”. Para
aqueles que ultimamente morreram de um câncer ou das consequências
e sequelas de um câncer, a ideia de que eles “perderam” uma
batalha implica para mim que, se eles apenas tivessem feito ALGO de
maneira diferente, então talvez eles pudessem ter “vencido”.
Desculpe, mas isso simplesmente não funciona a maior parte do tempo.
O uso da palavra
“perder” é como um jogo de soma zero para mim: se alguém ou
algo “perde”, então isso significa que alguém ou algo
igualmente “ganha”. Você não pode ter um perdedor se não tem
um vencedor.
Eu rejeito a
ideia de que deveríamos tão facilmente dar ao câncer esse tipo de
poder sobre nós.
Que outras
doenças ou condições fazem-nos ceder-lhes esse tipo de poder?
Minha mãe morreu há poucos anos atrás de uma síndrome
respiratória aguda provocada pela gripe H1N1. Alguém falou que ela
“perdeu sua batalha para um vírus”? Não, ela morreu de uma
infecção respiratória. Se alguém sofre ao longo de toda a vida de
hipertensão e eventualmente morre de um ataque cardíaco ou infarto,
nós vamos escrever no obituário que essa pessoa “perdeu sua
batalha para a alta pressão sanguínea”?
Então por que
tantas (talvez quase todas?) mortes por câncer são relatadas assim:
“depois de uma luta/batalha, fulano perdeu sua batalha com o
câncer”? Não é exatamente “culpar a vítima”, mas isso dá
margem a que se coloque a responsabilidade final por ter morrido nas
mãos da pessoa falecida.
Eu sei que
muitos pacientes com câncer e apoiadores vão discordar totalmente
de mim, sentindo que a analogia da batalha os fortalece de alguma
maneira. Talvez isso os fortaleça quando eles estão vivos e
chutando e lutando e arranhando e “batalhando”. Mas se eles não
sobrevivem, então, por favor, não vamos culpá-los inadvertidamente
por “perder” a batalha contra o câncer.
Roger Ebert não
perdeu sua batalha contra o câncer. Ele viveu graciosamente e
corajosamente com ele até o verdadeiro fim. De muitas e muitas
formas, inspirando e ensinando-nos, ele venceu sua batalha de
maneiras significativas e vastas. Ele foi um maravilhoso exemplo,
correto até o fim.
Ele não perdeu
sua batalha contra o câncer.
Ele VENCEU sua
batalha com o câncer...
… E,
tristemente, ele também morreu de câncer ontem.
Acredito que todos os que vivem uma parte longa ou curta de suas vidas com o câncer precisam ter sua "luta" respeitada, independente de como ela acaba. A cura não é a única forma de vencer.
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