domingo, 21 de abril de 2013

A LINGUAGEM DO "PERDEDOR"

O texto a seguir, sobre a morte do crítico de cinema Roger Ebert, foi escrito por Michael A. Wosnick, pesquisador do câncer no Canadian Cancer Society e National Cancer Institute of Canada. 
Trata-se de uma reflexão sobre o vocabulário usado para tratar da morte de pessoas por câncer. O texto original pode ser lido em http://www.kevinmd.com/blog/2013/04/roger-ebert-lose-battle-cancer.html 


Roger Ebert não perdeu sua batalha contra o câncer
 ou
 Quando se lida com câncer, a linguagem do “perdedor” não funciona

Michael Wosnick                                         05 de abril de 2013

Fiquei muito entristecido ontem ao saber da morte de Roger Ebert. Eu, como muitos ao redor do mundo, estava impressionado e inspirado de como ele tomou nas mãos seu destino após as consequências da cirurgia de câncer anos atrás que o deixou inválido e desfigurado e incapaz de comer, beber ou falar. E, ainda, apesar de sua luta, ele permaneceu uma força dominante na crítica cinematográfica, blogando, escrevendo (até mesmo livro de receitas!) e inspirou muitos de nós com sua visão da vida e do viver.
Isto não é um obituário de Roger Ebert. Dezenas deles foram escritos, e por pessoas que o conheciam. Eu não o conhecia. Eu o admirava de longe.
Mas desde que eu estive lendo tantos relatos da morte de Ebert, um após o outro, o que me chocou, assim como aconteceu em muitas e muitas outras vezes no passado ao ler sobre alguém que morreu de câncer, é quanto dos óbitos e tributos invevitavelmente fazem referência a como ele “perdeu sua batalha com o câncer”.
Não. Ele não perdeu. Ele morreu de câncer.
Esse é realmente um assunto dolorido para mim, e embora o que segue não seja exatamente sobre pesquisa de câncer, vou aproveitar a oportunidade para desafogar alguns sentimentos que guardei por um longo tempo.
Eu estava pronto para esta ação ontem à noite, quando li um tweet de Jody Schoger, uma defensora da causa do câncer de mama que, entre outras coisas, escreve um blog chamado “Mulheres com câncer”. Nunca encontrei Jody pessoalmente, mas sinto que a conheço bem de nossas interações no Twitter. Então não foi uma surpresa que o seu tweet tenha repercutido em mim e capturado o que eu acreditei fortemente por um tempo: “Uma vez mais com ênfase: Roger Ebert não perdeu sua batalha com o câncer. O câncer roubou sua vida.”
Repliquei: “Batalha perdida é muito errado. RT @jodyms Uma vez mais com ênfase: Roger Ebert não perdeu sua batalha com o câncer. O câncer roubou sua vida.”
Nunca tomei de modo agradável algumas das bem gastas analogias militares frequentemente usadas no campo do câncer. A “guerra ao câncer”, o uso de “bombas inteligentes de drogas”, “balas mágicas” e outras do tipo não me agradam. Mas o que realmente me incomoda é a ideia de que pessoas batalham contra o câncer e perdem.
Câncer não é um jogo de ganhadores e perdedores. Se você vive, vence e se você morre, perde? Quão inapropriado é isso?
De modo enfático, NÃO acho que a maioria dos pacientes com câncer e sobreviventes não tenham de fato LUTADO contra essa doença É certo que eles lutaram em muitos casos contra longas adversidades. Eu sei como é duro lidar com um diagnóstico de câncer e resistir a tratamentos oncológicos mesmo “moderados”. Isso exaure o corpo e a mente, com frequência tira a dignidade e devasta as relações e famílias e tudo o mais que é importante para todos nós. Então não, não estou dizendo que pessoas que enfrentam o câncer não são valentes e corajosas e não estão em uma verdadeira “batalha”.
Não é a parte da “batalha” que me incomoda – é a parte do “perder”. Para aqueles que ultimamente morreram de um câncer ou das consequências e sequelas de um câncer, a ideia de que eles “perderam” uma batalha implica para mim que, se eles apenas tivessem feito ALGO de maneira diferente, então talvez eles pudessem ter “vencido”. Desculpe, mas isso simplesmente não funciona a maior parte do tempo.
O uso da palavra “perder” é como um jogo de soma zero para mim: se alguém ou algo “perde”, então isso significa que alguém ou algo igualmente “ganha”. Você não pode ter um perdedor se não tem um vencedor.
Eu rejeito a ideia de que deveríamos tão facilmente dar ao câncer esse tipo de poder sobre nós.
Que outras doenças ou condições fazem-nos ceder-lhes esse tipo de poder? Minha mãe morreu há poucos anos atrás de uma síndrome respiratória aguda provocada pela gripe H1N1. Alguém falou que ela “perdeu sua batalha para um vírus”? Não, ela morreu de uma infecção respiratória. Se alguém sofre ao longo de toda a vida de hipertensão e eventualmente morre de um ataque cardíaco ou infarto, nós vamos escrever no obituário que essa pessoa “perdeu sua batalha para a alta pressão sanguínea”?
Então por que tantas (talvez quase todas?) mortes por câncer são relatadas assim: “depois de uma luta/batalha, fulano perdeu sua batalha com o câncer”? Não é exatamente “culpar a vítima”, mas isso dá margem a que se coloque a responsabilidade final por ter morrido nas mãos da pessoa falecida.
Eu sei que muitos pacientes com câncer e apoiadores vão discordar totalmente de mim, sentindo que a analogia da batalha os fortalece de alguma maneira. Talvez isso os fortaleça quando eles estão vivos e chutando e lutando e arranhando e “batalhando”. Mas se eles não sobrevivem, então, por favor, não vamos culpá-los inadvertidamente por “perder” a batalha contra o câncer.
Roger Ebert não perdeu sua batalha contra o câncer. Ele viveu graciosamente e corajosamente com ele até o verdadeiro fim. De muitas e muitas formas, inspirando e ensinando-nos, ele venceu sua batalha de maneiras significativas e vastas. Ele foi um maravilhoso exemplo, correto até o fim.
Ele não perdeu sua batalha contra o câncer.
Ele VENCEU sua batalha com o câncer...
… E, tristemente, ele também morreu de câncer ontem.

Um comentário:

  1. Acredito que todos os que vivem uma parte longa ou curta de suas vidas com o câncer precisam ter sua "luta" respeitada, independente de como ela acaba. A cura não é a única forma de vencer.

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